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A tributação dos super-ricos e a desigualdade socioeconômica

23/10/24 às 14:30 por Sindjuf/SE
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Por Aldemario Araújo Castro*

 

“Defendi [mantenho essa posição desde 2014] uma reforma tributária que introduza uma taxação progressiva e que atinja os super-ricos. Isso é algo que precisa ser amplamente discutido pela sociedade. No Conselhão, escrevi um artigo apoiando a proposta do ministro Fernando Haddad de levar ao G20 a taxação dos super-ricos em nível global. Essa medida global pode ajudar a evitar que o capital fuja de um país para outro. Internamente, a segunda parte da reforma tributária deve ser progressiva e atingir os mais ricos” (fonte: oglobo.globo.com). Esse é um trecho da entrevista concedida pela socióloga Maria Alice Setubal à jornalista Miriam Leitão (divulgada no dia 14 de setembro de 2024). Neca Setubal, como é mais conhecida, é uma das principais acionistas do Banco Itaú.

 

Também em setembro de 2024, Bill Gates, cofundador da Microsoft,  em entrevista exclusiva ao jornal Folha de S. Paulo, defendeu que os super-ricos paguem mais impostos. “Não acho que haverá um imposto global porque não temos um governo global. Se houvesse uma votação sobre algo assim, eu votaria a favor, porque acho que precisamos arrecadar mais e financiar coisas relacionadas à desigualdade. Porém, acho que a realidade é que cada país terá de criar suas próprias políticas tributárias” (fonte: folha.uol.com.br).

 

O bilionário Bill Gates fez expressa referência a uma proposta do Brasil, apresentada ao G20, de tributação internacional das grandes fortunas. “O modelo, que vem sendo desenhado pela equipe de Haddad em conjunto com a vencedora do prêmio Nobel de Economia Esther Duflo e pelo economista Gabriel Zucman, consiste em criar um sistema tributário internacional ao qual os impostos de grandes corporações teriam uma alíquota de 15%./O plano também exigiria que os multimilionários pagassem impostos no valor de pelo menos 2% da sua riqueza total todos os anos./Os valores recolhidos seriam direcionados a um fundo social e revertidos para o combate a mudanças climáticas e à pobreza, além do financiamento de projetos voltados ao meio ambiente” (fonte: cnnbrasil.com.br).

 

No debate voltado para a redução das desigualdades socioeconômicas a questão da tributação dos super-ricos ocupa uma posição especial.  A construção de um sistema tributário progressivo, com oneração de forma mais justa daqueles que possuem mais recursos (ou capacidade econômico-contributiva), é crucial para promover um ambiente social mais equilibrado em termos de distribuição da riqueza produzida.

 

Não custa destacar que a Constituição brasileira de 1988 consagra a progressividade como característica de inúmeras exações tributárias, em especial o imposto de renda e proventos de qualquer natureza (art. 153, parágrafo segundo, inciso I). A forma mais comum de realizar a progressividade é o aumento da alíquota do tributo à medida que cresce a base de cálculo. Nesse sentido, não são poucas as vozes que, com acerto, afirmam que o atual modelo legal do imposto de renda da pessoa física não observa essa exigência constitucional. Afinal, a previsão de somente três alíquotas (7,5%; 15% e 22,5%) é claramente insuficiente, não obstante a utilização da “parcela a deduzir”.

 

O Poder Constituinte Originário também decidiu expressamente pela tributação dos super-ricos. Entre os tributos previstos na Constituição figura o imposto sobre as grandes fortunas (art. 153, inciso VII). Sintomaticamente, depois de 36 (trinta e seis) anos de vigência da Constituição, essa exigência tributária jamais foi instituída por intermédio da pertinente lei complementar.

 

Existe um amplo reconhecimento de que a riqueza extrema tende a se perpetuar e aprofundar ao longo das gerações. Esse movimento acentua o desequilíbrio socioeconômico. Admite-se que tributação progressiva sobre grandes fortunas e rendas tem forte potencial de atuar como uma forma de redistribuição de recursos pecuniários. Assim, ocorreria uma sensível redução do acúmulo desproporcional de riquezas e a promoção de uma sociedade mais justa e igualitária.

 

A enorme e crescente concentração de riquezas afeta negativamente a atividade econômica, notadamente na forma do rentismo predatório da atualidade. A depreciação do consumo de largas parcelas da população limita significativamente o crescimento econômico, com perversas repercussões na geração de empregos e rendas para os setores sociais mais vulneráveis.

 

A tributação dos super-ricos pode ser uma importante fonte de recursos para financiar políticas públicas com enormes repercussões sociais para os menos favorecidos. Ações estatais voltadas para concretizar uma educação pública de qualidade, o acesso universal à saúde e investimentos em infraestrutura induzem a criação de empregos e o fortalecimento do mercado interno.

 

A justa tributação dos super-ricos pode ser um relevante fator de ajuda para financiar políticas de bem-estar social, combate à pobreza extrema e construção de uma ampla rede de segurança para os mais vulneráveis. Programas de transferência de renda bem desenhados, com bolsas e subsídios para famílias de baixa renda, são bons exemplos de como os recursos arrecadados podem ser direcionados para promover a necessária justiça social.

 

Um dado é bastante revelador da iniquidade da situação socioeconômica brasileira, especialmente no que tange à tributação. Os super-ricos brasileiros têm a quarta maior fortuna do mundo em paraísos fiscais. “O documento The Price of Offshore Revisited, escrito por James Henry, ex-economista-chefe da consultoria McKinsey, e encomendado pela Tax Justice Network, mostra que os super-ricos brasileiros somaram até 2010 cerca de US$ 520 bilhões em paraísos fiscais” (fonte: bbc.com).

 

Um dos argumentos mais comuns contra a tributação dos super-ricos sustenta que ocorreria uma inibição do investimento e até mesmo a fuga de riquezas. Entretanto, essa relação não é tão direta quanto se costuma divulgar, conforme vários estudos especializados demonstram. Não se perca de vista que a maior parte dos investimentos em inovação, com a consequente geração de empregos, decorre da demanda do mercado e de ações do Poder Público.

 

Um sistema tributário progressivo, inclusive com a adequada tributação direta dos super-ricos e a supressão de benefícios fiscais indevidos, é um dos mais importantes componentes para a construção de uma sociedade baseada na solidariedade e justiça social. Nesse sentido, confira-se a “Campanha Tributar os Super-Ricos” (site: ijf.org.br/tributar-os-super-ricos).

 

Infelizmente, o debate público, dominado por questões de costumes, religião e por uma polarização irracional, carece da presença de temas estratégicos que interferem em aspectos estruturais do funcionamento da sociedade brasileira.

 

[*] Mestre em Direito e procurador da Fazenda Nacional.

 

Fonte: Congresso em Foco